FRANCESES DEVOLVEM LARGO DO BOTICÁRIO AO RIO

POR JAN THEOPHILO

Na primeira e única aventura de 007 no Brasil (“Contra o Foguete da Morte, de 1979), uma cena virou um marco da história do cinema: aquela onde o vilão Dentes de Aço arrebenta os cabos do bondinho do Pão de Açúcar com uma senhora mordida. Mas o filme guarda outras sequências inesquecíveis. Em uma delas, o ator Roger Moore, o menos sisudo de todos os James Bond de Hollywood, irrompe a cavalo, trajando um inadequado poncho mexicano, em um lugarejo escondido na paisagem carioca para um encontro. A câmera mostra cinco casas em estilo neocolonial abraçadas pela Mata Atlântica, num terreno cortado pelo Rio Carioca. Aquele pequeno largo, definido pela escritora Clarice Lispector como “um dos lugares mais bonitos do Brasil”, é um endereço que tem um lugar cativo no coração de todos os cariocas: O Largo do Boticário, que depois de anos de glória e decadência, ganhou um senhor banho de loja e prepara-se para voltar a ser um dos points mais badalados e descolados da cidade.

Na América do Sul, o largo será o primeiro hotel Jo&Joe, marca lifestyle do Grupo Accor — mesma dona do Fairmont e do Sofitel, além de Ibis, Pullman e MGallery — que une conceitos de hotel e hostel. A ideia é transformar o local em um espaço com quartos, bares e restaurantes para receber hóspedes e visitantes. “Este local personalizado tem a ambição de se tornar e permanecer um dos principais pontos da cidade, tanto para viajantes, como para a vizinhança”, diz o vice-presidente de Marcas e Operações do Jo&Joe, François Leclerc. Depois de vários adiamentos, devidos em parte à pandemia e em outra aos atrasos naturais decorrentes de uma restauração deste porte, a inauguração está prevista inicialmente para junho, mas podendo ser remarcada para o segundo semestre, a depender das condições sanitárias. Na ocasião será lançado um livro que irá contar toda a história do Largo do Boticário, e mostrar como foram feitos os trabalhos de revitalização arquitetônica com a supervisão do Inepac.

A história do Largo do Boticário começa em 1831, quando Joaquim Luís da Silva Souto, boticário (óbvio) que tinha seu estabelecimento na antiga rua Direita, atualmente rua Primeiro de Março, no centro do Rio, comprou terrenos no Cosme Velho na região onde hoje se situa o largo. Joaquim era um comerciante muito bem-sucedido, com loja na principal região comercial da cidade, e que tinha entre seus clientes nada menos que a Família Imperial. Em 1846, mudou-se para um daqueles terrenos o marechal Joaquim Alberto de Souza Silveira, padrinho de nascimento de Machado de Assis.

Mas as feições do largo como conhecemos hoje só começaram a ser dadas nos anos 1920, quando o empresário Edmundo Bittencourt, fundador do jornal Correio da Manhã (um dos mais importantes da história do Brasil) comprou o terreno e começou a construir ali casas em estilo neocolonial. O ‘style’ foi mantido nas expansões das décadas de 1930 e 1940 pelos novos moradores. Dentre eles, o diplomata e colecionador de arte Rodolfo da Siqueira, arquiteto amador que viveu no largo entre 1928 e 1941; e pelos jornalistas Sylvia de Arruda Botelho Bittencourt e seu marido Paulo, herdeiros do Correio da Manhã.

Algumas das casas foram reformadas com a participação de arquitetos modernistas como Lucio Costa e Gregori Warchavchik (sem contar um tal Burle Marx que deu palpites no jardim), utilizando materiais autênticos da época colonial provenientes de demolições realizadas na cidade. Isto acabou gerando uma das muitas lendas equivocadas sobre o local que cruzam a cidade: a de que teria sido apenas um bem sacado empreendimento imobiliário, sem nenhuma relevância histórica. A única mudança efetiva implementada pelo urbanista que desenhou Brasília foi fundir duas casas em uma grande mansão, que passou a ser conhecida como a Casa Rosa. Detalhe: Lucio foi demitido por Sylvia durante as obras, por discordâncias entre suas visões e a da jornalista, uma mulher de posições firmes, primeira a receber o prestigiado Prêmio Maria Moors Cabot, de Jornalismo, em 1941.

Fato é que das várias histórias e causos do largo, Walt Disney efetivamente esteve por lá em 1942, durante seu giro pela América Latina. Dizem que quando um pequeno inseto pousou nas mãos de Sybil Bittencourt, filha de Sylvia e Paulo, ainda criança, ele teria tido a ideia de criar o personagem Grilo Falante. Também foi lá que Sybil posou para um famoso retrato pintado por Cândido Portinari. O largo figurou ainda em um filme de uma dupla italiana que fazia enorme sucesso nos cinemas brasileiros nos anos 70 e 80: Mario Girotti e Carlo Pedersoli, mais conhecidos como Terence Hill e Bud Spencer.

De certa maneira, o Golpe Militar de 1964 contribuiu decisivamente para a decadência do Largo do Boticário. Paulo Bittencourt se casara novamente com Niomar Muniz Sodré, que com a morte do marido, assumiu o comando do “Correio da Manhã”. Sob sua batuta, o então prestigiado jornalão se opôs à ditadura, e as reações não tardaram a chegar. Anunciantes cancelavam contratos sob pressão do governo, a redação sofreu ataque de bombas e Niomar e vários diretores foram processados e presos. Ela resistiu o quanto pode, mas acabou arrendando o Correio a um grupo de empresários. O jornal deixou de circular em 8 de julho de 1974.

A derrocada do Largo veio menos de 20 anos depois. No início da década de 1990 a maioria das casas do Largo do Boticário já estava em total processo de deterioração. Até o Rio Carioca, que antes corria por ali, caudaloso, virara um córrego poluído. Em 1995, em uma tentativa de despertar a atenção para a dramática situação do local, os organizadores da Casa Cor escolheram a Casa Rosa, famosa propriedade da família Bittencourt, para ser a sede da mostra. Foi a última vez que os casarões viram alguma reforma efetiva. Entre 2006 e 2008, um dos imóveis chegou a ser invadido e ocupado por um grupo de sem-teto. E o terreno, transformado em depósito de carros roubados e ponto de tráfico de drogas e prostituição.

A herdeira, Sybil Bittencourt, nunca revelou em nenhuma entrevista, seja para jornalistas ou pesquisadores, por que nada fez para impedir a destruição do espaço. Mas foi feliz ao escolher um parceiro ideal para ajudá-la a encontrar uma solução: o empresário Claudio Castro, dono da Sérgio Castro Imóveis, que abraçou o projeto. “Quando ela me procurou, aquilo tudo me tocou como carioca, não só como empresário. Até porque, pensa bem, de que adianta eu oferecer imóveis fantásticos aos meus clientes se o que está em volta não presta”, conta ele que, no currículo, tem a recuperação do Hotel Santa Teresa e do Teatro Riachuelo.

Claudio partiu atrás de investidores por toda parte. “Fomos até a uma feira de imóveis de luxo em Guangzhou, na China, com mais de 100 expositores, onde montamos uma maquete enorme do Largo do Boticário”, lembra ele. E foi num desses eventos internacionais onde se vende “quinquilharias” como hotéis, vinícolas, castelos ou ilhas paradisíacas que surgiu o interesse da rede francesa Accor. A empresa pagou cerca de R$ 20 milhões pelos seis casarões e investiu outros R$ 30 milhões na revitalização do empreendimento, elaborado pelo escritório Ernani Freire Arquitetos.

O HOTEL

O Jo&Joe Rio terá 350 camas, oferecidas em 70 acomodações divididas em quartos individuais ou compartilhados para até 10 pessoas. Áreas sociais, piscina, área para churrasco e espaço para o coworking fazem parte do projeto. Um grande bar de cervejas e cachaças variadas, ao estilo dos clubes norte-americanos, será uma das atrações e terá capacidade para 300 pessoas. “Nos fundos das casas tem ainda uma abertura maravilhosa para um parque verde”, conta Cláudio Castro: “e uma das ideias é colocar ali pequenos bistrôs e um espaço para venda de produtos orgânicos”, diz.

Nem tudo foram tijolos dourados até essa história chegar ao esperado final feliz. Primeiro, o ex-prefeito Cesar Maia precisou dar uma canetada para tombar as casas. Anos depois, com a possibilidade do negócio com os franceses, uma mobilização da associação dos moradores, com o apoio dos vereadores Fernando Willian, João Ricardo e Cesar Maia (agora jogando em nova posição), foi aprovada e sancionada uma legislação municipal permitindo a exploração comercial daquela região, até então de uso exclusivo para residências. O bom-senso acabou prevalecendo. E o Rio de Janeiro só tem a agradecer.